OBRIGADO, FADA DOS DOCES E DA CARIDADE PURA!
Este pequeno capítulo de minha vida pouco tem a ver com a minha vida. Na verdade traz o nome de quem passou imperceptivelmente para muitos pelo meu caminho, deixou uma marca de bondade e hoje partiu do convívio humano. Estou me referindo a gente diferente que deixa muita saudade: Maria da Piedade Pessoa Moreira. Na simplicidade, Fada dos Doces, e na intimidade, Dona Maria do Seu Ninico Motta. Ainda esmiuçando-se a identidade: marido Antônio Motta Moreira e filho Antônio Celso Pessoa Gonçalves Moreira, ex-prefeito de São Sebastião do Rio Preto por quatro mandatos.
A historinha, valiosa para este escrevinhador, transcorre
naquela sexta-feira, 21 de dezembro de 1962, dia chuvoso na região de São
Sebastião até Belo Horizonte. Era meia-noite, hora em que Machado de Assis
convocava as assombrações e fazia-as desfilar em incontáveis contos e romances.
Arrancamo-nos assim da terra natal: um saco de roupa carregando enxoval
reduzido, um guarda-chuva, sapato na sacola, calças arregaçadas e um sanduíche
de pernil com um litro de cachaça, além de um pet de guaraná Antárctica. Além
de tudo, uns réis de miséria nos bolsos para exatamente pagar as passagens,
cujo total perdemos inapelavelmente no percurso.
O fato inesperado atrasara a nossa caminhada até o local
chamado Barra Dantas, encruzilhada do município de Passabém com o de Ferros.
Discussão entre Zé Flávio e eu, meu eterno companheiro de ideias e de
aventuras, inseparável, procura nos entender o que faremos sem dinheiro dentro
do ônibus Irmãos Lessa, que faz a linha Ferros à Capital. Só nos detemos
no diálogo rompante, molhados por aquela garoa intermitente, quando chegamos à
seguinte conclusão: seremos colocados para fora do busão e viraremos micos de
um barraco inesquecível. Com absoluta certeza, nossos pais e nossas famílias
saberão detalhes da expulsão e se corarão de vergonha pela vida afora. Do
futuro de fome em BH nem cogitamos.
O “cata-jeca”, apelido que arrumaram para o ônibus que
carrega jecas-tatus, e éramos dois deles, parou e entramos de caradura
como se fôssemos gente, e nos enfiamos até o fim da carruagem, assentamo-nos
nas poltronas 24 e 25. Aí, Zé Flávio resmungou no meu ouvido numa altura acima
do normal, diria aos gritos: “Vamos passar vergonha com a Dona Maria do Seu
Ninico Motta, aquela senhora ali na frente”. E chega o trocador perguntando, de
tabuleta em punho: “Pra aonde vão?” Zé Flávio responde: “Pra BH, mas não temos
dinheiro, perdemos tudo na estrada”.
O cobrador para de rabiscar os seus arabescos e
nos olha com cara de porteiro de funerária: “O queeeeê”. E dá sinal de
que vai nos pôr para fora do ônibus. Sai em desabalada correria,
atropelando balaios de galinhas e outros apetrechos. Mas é detido por Dona
Maria que lhe pergunta: “Ouvi a conversa. Quanto é as passagens deles?” O
trocador diz um valor assim que não ouvi e emite dois bilhetes, recebe o
pagamento, dá o troco e se diz satisfeito. Imaginei que dissesse: “Salvou a
molecada!”
Em seguida, acontece o seguinte: Dona Maria nos chama,
dá-nos os bilhetes com as duas passagens e nos encurrala de perguntas, sob
olhares de curiosos:
— Vocês são filhos de quem?
— Estão fugindo de casa?
— O que vão fazer em Belo Horizonte?
— Quantos anos têm?
Não deu folga para respondermos, mas depois aguardou
que prestássemos a devida conta: “Paguei as passagens porque
conheço suas famílias, mas não quero ajudar vocês a cometerem fugas de casa”.
A todas as perguntas respondemos, mas mentimos quando
fugimos da fuga de casa. Na verdade, era isso mesmo, e Dona Maria adivinhou.
Contudo, essa escapadela completava a quarta que aprontamos e acho até
que meus pais se acostumaram com a arte.
O tempo passou. Agora moro em Itabira. Sou casado e pai de
muitos filhos. Dona Maria sai de um carro de luxo, não sei a marca, tem um
motorista especial, entra no nosso comércio, Cantinho do Pão de Queijo, e
oferece uma belíssima goiabada, com um rótulo muito bonito e outras informações
que atraem os consumidores. Deixa uma dúzia de barras de doces, embalados
devidamente, promete retornar “na semana que vem”, sugere um preço. E só.
Várias vezes tento abrir a boca e falar sobre o episódio de Barra Dantas, ocorrido
há umas três décadas, agradecer mais uma vez a gentileza das passagens
pagas, mas ela parece desconfiar e evita que eu toque no assunto.
Levo uma barra de Goiabada de Dona Maria para casa, todos
adoram e pedem bis. Torno-me amigo dela, ela sempre evitando falar da
ocorrência da beirada de estrada. Ultimamente perco o contato, infelizmente. Só
me recordo de quando falamo-nos numa festa em São Sebastião, quando José
Aparecido de Oliveira está lá, em 17 de fevereiro de 2001, fazendo
aniversário, leva o mundo cultural do Brasil à bela Fazenda de Ninico
Motta para um almoço inesquecível. Antes, acompanhando aquele momento inesquecível
em missa na Igreja Matriz, a cantora lírica Maria Lúcia Godoy entoa “Panis
Angelicus”. Dona Maria emocionada tenta enxugar uma lágrima que cai fronte
abaixo.
Hoje, 13 de agosto, Dona Maria nos deixa. Uma grande mulher.
A Fada dos Doces. A secretária ativa do marido também ativo em todos os
instantes nos quais o acompanhou. Deus a recebe com cânticos dos anjos e
uma Ave Maria de Gounod emocionante. Nós a saudamos daqui da vida
passageira terrestre e agradecemos por nos brindar com suas belezas interior e
exterior durante 93 anos.
Não tenho a vergonha de repetir o fato que ela tentou
esconder: obrigado, Dona Maria, pelas passagens que evitaram a nossa derrocada
e pelos doces que revelam a doçura de uma alma também doce.
José Sana
Em 13/08/2022
P.S.: Crônica republicada nesta data (22/04/2025) a pedido do conterrâneo e amigo Sebastião Saturnino, lembrando a participação do primo José Flávio no desenrolar da pequena história. Lembrando que Zé Flávio está presente em dezenas de outros textos.
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